João, da Hungria

À memória de João Zsengellér, meu avô.

Setembro de 1912. Erdőgyarac era uma aldeia escondida entre vinhedos, bosques e o vento gelado dos Cárpatos. Ali, no condado (vármegye) de Bihar, o Reino da Hungria, que pertencia ao Império Austro-Húngaro, ainda se estendia sobre toda a Transilvânia como uma sombra antiga, unindo povos, idiomas e crenças sob a mesma coroa.

Uma breve infância

János nasceu numa família rural típica, o segundo filho de um casal de camponeses húngaros, o primeiro filho homem.

Naquele tempo, Erdőgyarak se resumia a um punhado de casas, um moinho, campos que se perdiam no horizonte, fileiras de vinhedos e pequenas propriedades familiares.

A vida da aldeia girava em torno da terra, das estações do ano e da igreja, entre canções ciganas ao redor da fogueira e histórias de um tempo onde tudo era diferente. 

Os invernos eram longos e os verões dourados. No inverno, as casas se encolhiam sob a neve; no verão, os campos pareciam mantos verdes cheios de flores, para correr e brincar.

A viticultura tinha longa tradição na região. A área integra a antiga “vinyerda de Arad”, conhecida por produzir vinhos desde séculos atrás, e figura até hoje em museus e rotas do vinho locais.

A casa onde János nasceu, na minha imaginação

A viticultura tinha longa tradição na região. A área integra a antiga “vinyerda de Arad”, conhecida por produzir vinhos desde séculos atrás, e figura até hoje em museus e rotas do vinho locais.

A família de János tinha terras que, além de garantir a própria subsistência, permitia que vendessem parte de sua produção, garantindo desta forma uma vida considerada confortável para a época.

E então veio a guerra — a primeira, aquela que prometia terminar todas as outras.
O império ruiu, e as fronteiras seriam redesenhadas à força, assim como a vida de János.

Református templon em Erdőgyarac, hoje Ghioroc.

A igreja ainda existe. Eis o endereço:
Str. Gării, DJ709E, Ghioroc, Romênia.
46.713438, 21.681614
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A grande guerra

A primeira grande guerra eclodiu em julho de 1914. Nesta altura a família havia aumentado, e János tinha agora uma irmã mais nova. Eram portanto, três filhos, e sua mãe esperava mais um bebê.

O Império Austro-Húngaro entrou na guerra desde o início, e foi uma das principais nações das Potências Centrais, junto com a Alemanha. A Hungria, como parte do império, contribuiu com um número significativo de tropas e recursos para o esforço de guerra, principalmente alimentos e suprimentos.

A Romênia entrou na guerra mais tarde, em agosto de 1916 quando declarou guerra ao Império Austro-Húngaro e se juntou ao bloco oposto, o dos Aliados (Tríplice Entente).

János viu seu pai ser obrigado a se alistar no exército Húngaro e partir para a guerra. Viu também, tempos depois, seu pai voltar devido a um ferimento à bala.

Durante o conflito, a linda região de sua breve infância, foi transformada em campo de batalha, com trincheiras a perder de vista. As terras da família foram ocupadas pelos soldados, principalmente os alemães. O antigo lar passou a ser compartilhado com os oficiais e seus cavalos, que eram guardados e alimentados na sala, antes palco de felizes reuniões.

A fome e o medo passaram a rondar a vida de todos.

O preço da derrota

A ofensiva romena inicial na Transilvânia foi rapidamente repelida e o país foi invadido pelas Potências Centrais. A Romênia foi forçada a assinar o Tratado de Bucareste em maio de 1918, retirando-se da guerra.

No entanto, o colapso das Potências Centrais e o fim da guerra em 11 de novembro de 1918 permitiu que a Romênia reentrasse na guerra um dia antes do final, o que colocou o país entre os vencedores.

Ao invés de alívio, o final da guerra trouxe apreensão. Com a queda das Potências Centrais, o Império Austro-Húngaro se desfez, e a Hungria se tornou um país independente, mas derrotado e a mercê do espólio de guerra.

Na pequena aldeia, os rumores de uma ocupação romena se espalhavam.

Em junho de 1920, a assinatura do Tratado de Trianon, um dos tratados de paz que encerrou formalmente a Primeira Guerra Mundial, dividiu histórias, famílias e memórias. O reino da Hungria perdeu 2/3 do seu território para os países vizinhos, e a Romênia ficou com a maior parte, a região da Transilvânia.

Desmenbramento da Hungria após o Tratado de Trianon, em 1920

Da noite para o dia, povoados húngaros acordaram romenos. Famílias que jamais haviam deixado o lugar onde nasceram descobriram que, de repente, viviam em outro país.

As placas das ruas mudaram de idioma, os sinos das igrejas soaram em outro tom e o hino nacional passou a ser de um novo governo.

E János passou a se chamar Ioan.

Mas para quem nasceu ali, entre vinhas e colinas, nenhuma nova bandeira substituiria o sentimento de pertencimento à antiga pátria, apesar do medo e da fome agora serem parte da rotina.

Erdőgyarak, o vilarejo húngaro da região da Transilvânia escondido entre vinhedos e bosques do condado (vármegye) de Bihar se tornou a aldeia romena de Ghioroc, que pertence à comuna de Ciumeghiu, entre os condados (judets) de Bihor e Arad, regiões administrativas reorganizadas na mesma macrorregião da Crisana/ Transilvânia.

A vida no pós-guerra

As terras, os bosques e o lar de outrora já não eram mais como antes. Tudo agora se resumia a subsistir e, em muitas situações, sobreviver.

As comunidades húngaras na Transilvânia enfrentaram — em graus variados — políticas de integração e tensões sociais, o que em muitos casos se traduziu em discriminaçõesexpropriações, conflitos por terra e instabilidade econômica.

As trocas comerciais, mercados e rotas mudaram; impostos e leis de posse foram reavaliados no novo quadro nacional — efeitos que sufocaram propriedades rurais de médio porte, deixando as famílias sem meios de subsistência.

Os vizinhos começavam a partir.

Uns para a França, outros para a Bélgica ou para a América. Histórias de longas viagens de trem, dos navios a vapor e dos sonhos de um futuro promissor em terras distantes ecoavam por toda a parte.

Falava-se de Bordeaux, Marselha, e do outro lado do oceano — Brasil, a terra da abundância e da liberdade.

János contava agora com 5 irmãos. Uma irmã mais velha, e quatro mais novos: um irmão e mais três irmãs, a mais nova recém-nascida.

Um sonho de liberdade

No final de fevereiro de 1925, Janós, sua família e um grupo de parentes e amigos estavam diante do SS Mosella, um vapor de 150 metros de comprimento atracado no porto de Bordeaux, França.

Os dois mil quilômetros que separavam a velha aldeia húngara de Bordeaux pareceriam intransponíveis para qualquer pessoa na Europa do início do século XX, que se recuperava de uma grande guerra. Não havia automóveis, as linhas de trem estavam em condições precárias e a escassez de recursos e alimentos, bem como a violência,  assolavam a região. Para uma família com 6 crianças, sem dinheiro e sem comida, o desafio seria inimaginável. Era preciso contar com a solidariedade, nem sempre disponível no pós-guerra, para se locomover com segurança, ter um abrigo para passar a noite ou ter algo para comer no final do dia. Quase sempre era preciso trabalhar em troca, quando havia essa possibilidade, o que tornava a viagem lenta e penosa.

Antes de embarcar, János pensou por um instante na longa travessia que se descortinava à sua frente.

De qualquer forma, chegar à Bordeaux tinha sido uma travessia em si. Noites frias ao relento ou em abrigos precários, longas e intermináveis trechos a pé em estradas de terra, arrastando malas de madeira com os poucos pertences que sobraram, carroças apertadas e trens lotados. E a fome. Quantas noites dormiram com fome? Quantos dias de jornada sem nada o estômago, carregando as crianças no colo?

Sem contar os trabalhos pesados que foi obrigado a executar, junto com o pai, nas fazendas e aldeias pelo caminho, para obter um pouco de comida ou algum dinheiro e assim poderem seguir adiante.

Por tudo isso, naquele momento, ele se sentiu grato por estar ali, com toda a sua família.

SS Mosella, que operou para a Compagnie de Navigation Sud-Atlantique até 1928

Baixou a cabeça e seguiu a multidão, que subia a rampa de embarque do Mosella. O cheiro do mar e do carvão do navio se misturava às vozes de muitas línguas da Europa.

Olhou para trás uma última vez e partiu para uma viagem sem volta, rumo ao desconhecido. Não fazia mais sentido permanecer num local que havia roubado sua infância, seus sonhos, suas terras e sua identidade.

Um novo sol

O Mosella finalmente atracou no porto de Santos em 25 de março de 1925. Foram 26 dias no mar, com outros 255 imigrantes a bordo compartilhando a terceira classe.

Ao desembarcar, János tinha 14 anos e trazia consigo sua certidão de nascimento, onde constava o nome que foi obrigado a adotar após a ocupação romena: Ioan.

Sentiu o impacto do ar quente e úmido, e imediatamente percebeu que o sol brilhava numa posição mais elevada no céu do Brasil. Notou também que o idioma local era incompreensível. Mal sabia ele que decifrar a língua seria apenas um dos muitos desafios que enfrentaria na nova terra.

Mas uma coisa ele sabia: não tinha chegado até ali para desistir. De fato, não desistiu. E venceu!

Essa é parte da história do meu avô. Um homem honrado que atravessou o oceano para construir uma nova vida, uma nova família e uma nova forma de dizer o seu nome. Um homem que nunca deixou de ser húngaro, mesmo quando foi discriminado, quando os documentos dos opressores teimaram em mudar as suas raízes. E que carregava na voz, e no coração, o sotaque de duas pátrias, uma delas verde e amarela.

Um homem que foi batizado como János, foi obrigado a se chamar Ioan, mas escolheu se tornar o “seu” João, o meu querido e eternamente amado vô João.

Bibliografia

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